27/04/2015

Revista Êxito - 67ª edição - Plantar e Colher

A semente e o buraco
Na época de plantio, as comunidades tradicionais do Peru dividem o trabalho de acordo com o gênero: os homens aram e as mulheres plantam. É delas a fertilidade. É no útero delas que mora o poder de dar a vida e fazer viver nessa terra que é Pachamama. Por puro raciocínio da memória, quem vive da terra sabe tomar decisões de acordo com a sabedoria antiga. Antigamente era assim, antigamente não era. Antigamente eu diria que a agricultura é simples. Hoje eu digo que o buraco e mais embaixo.
Um dos melhores aspectos do trabalho de jornalista é ser, como define Eliane Brum, uma escutadeira. Escutar quem fala palavras, quem fala gestos e quem fala silêncios. Escutar o olhar que se deita no chão, impedido de levantar. Escutar a fala rápida de quem detém técnicas e escutar a fala mansa de quem carrega marcas que a técnica apenas ouviu falar. Nesse exercício, não há busca pelo equilíbrio, pois ambas vozes não se equiparam. Nesse momento há que se apenas deixar falar e escutar com a ciência de que se tratam de visões distintas sobre uma realidade complexa demais para caber em seis páginas. Inútil seria não compreender que ambas falam sobre o mundo em que vivem.
Mas que mundo é esse que deixou a semente escravizar a planta? Mas que mundo é esse em que a comida que borbulha nas panelas vem temperada com o que fingimos não ver? Em que curva do rio nos esquecemos de todos os alienígenas que plantamos nessa terra em nome de quê? Por quê? Por quem?
São perguntas para as quais eu temo que jamais terei resposta. Talvez ela não exista. Ou talvez eu precise apenas ouvir um pouco mais da voz de quem fala e de quem não fala. Ouvir a chuva e o rio. A semente e o buraco.

Boas colheitas

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